Casa Angela, a primeira entrevista da Segunda Jornada Clarear

downloadÉpoca de São João, dia 24 de junho de 2014, acontecia a primeira entrevista da Clarear com a pergunta: Onde eu vou parir, porque devo refletir sobre isso?

Anke Reidel era uma das entrevistadas. Era uma manhã de inverno e eu tremia por dentro – igual quando fiz minhas primeiras entrevistas há mais de 20 anos. Motivo? Minha admiração pessoal por Anke e a vontade de saber atuar bem como jornalista. Confesso que a emoção era maior que minha escuta e muita coisa que Anke partilhou comigo no começo da nossa conversa ficou perdida na insegurança que sentia.

Aquele lugar é o sonho que desejo para todas as mulheres. É a Casa onde eu queria ter parido minhas filhas. Estar ali era reconhecer a possibilidade real dos sonhos, vivenciar a esperança de que um dia não será mais necessário mulheres, principalmente gestantes, investirem tanta energia sobre o direito de escolha do lugar do parto da mulher e do nascimento de uma criança. Essa diferenciação, aliás, de quem é o parto e de quem é o nascimento foi uma das lições que aprendi com Anke, uma estrangeira que veio para o Brasil para realizar o sonho de aprender assistir partos com Angela, que faleceu em 2000, antes de presenciar a materialização daquele lugar mágico.

Não consegui registrar muito da história da Casa Angela, que recentemente assinou convênio com a prefeitura de São Paulo, mas aprendi que a magia que sentia daquele lugar está relacionada com o cuidado e o respeito com o pré-natal. As mulheres que tem a oportunidade de chegar na Casa Angela há tempo de preparar para um parto terão a chance de aprender como funciona seu próprio corpo e as possibilidades de escolha que nos cabem quando gestamos um ser dentro de nós.

Ela me explicou sobre a visão holística e integral do ser humano que a Casa Angela adota quando recebe uma família, da abordagem do desenvolvimento infantil baseado na pedagoga Emmy Pikler, das simulações de cenários que são trabalhadas com as gestantes desde as 34 semanas e das informações que são transmitidas sobre a fisiologia do parto, as dores das contrações e dilatações e as questões das crenças culturais e religiosas para a formação de imagem de um parto real.

Falamos muito das diferenças entre o parto idealizado e o parto visualizado, o que naquela época ainda era um enigma pra mim, pois ainda não tinha sido iniciada por Carla Ferro à obra de Humberto Maturana. Aprendi com Anke a diferença entre se preparar para o parto que tem a ver com sua história e seu corpo com o desejo de não ter uma cesárea ou de se preparar para o parto humanizado das redes sociais.

O caminho pode até parecer o mesmo, mas o modo de percorre-lo faz toda diferença e depende muito da sua capacidade de clarear, ou não, seu discernimento. É exatamente esse clarear que pretendo partilhar contigo na abertura do Volume II, que está em campanha na Benfeitoria para se lançar no mundo em março de 2016. 

Depois de aprender muito com Anke, ouvi Endi Pi, que significa chama interior em tupi guarani. Endi é enfermeira obstétrica e, na época, coordenava a equipe de 12 enfermeiras. Tive a honra de ouvir toda sua trajetória profissional, que como de muitas mulheres foi marcada pela maternidade.

Ela entrou no hospital pela primeira vez aos 17 anos para parir sua filha, que nasceu prematura aos sete meses e meio num parto normal com episiotomia. Quando se formou aprendeu a cultura intervencionista do ambiente hospitalar que lhe deu muita experiência, também foi voluntária da Amparo Maternal quando terminou sua especialização em obstetrícia e voltou para realidade do sistema de saúde publico para montar um ambulatório no Hospital de São Bernardo, o que lhe deu bagagem administrativa e política. A assistência obstétrica falou mais alto e, então, Endi passou por um hospital privado onde viu tudo aquilo que ela aprendeu que não devia fazer: muita intervenção e total descaso aos aspectos pessoais de cada humano.

Ela conta que o cheirinho de goiabada da cozinha da Casa Angela foi o que lhe deu certeza de que naquela época ela estava atuando no lugar certo: quando pisei aqui, eu me encontrei. Falamos muito daquela reciprocidade que nos encantava pelo direito da mulher parir no seu corpo. Aprendi com Endi a olhar a cultura hospitalar, intervencionista e violenta como um lugar de passagem, um lugar de aprendizado para toda humanidade. Afinal todos temos impregnado em nossas células nosso modo de nascer e podemos recriá-lo para construir um futuro melhor aos nossos bisnetos. Depende só do nosso querer.

Eu nasci de forma traumática e violenta. No entanto, desde que me tornei mãe e descobri o processo de nos parir tenho transformado as dores da violência e do trauma em cada passagem da minha vida familiar. A Clarear faz parte desses partos e, neste volume, pari a responsabilidade pela minha liberdade!

Anke fugiu da minha câmera de celular, mas Endi gravou um vídeo que retrata um pouco do que se trata parir numa casa de parto, veja mais no Mamatraca. Aproveite para conhecer nossa campanha na Benfeitoria, que visa transformar esta entrevista parte da edição impressa do nosso segundo volume da Coleção Clarear: benfeitoria.com/clarear